Pais de alunos brasileiros dizem que convívio enriquece ensino. Este ano, número de pedidos de refúgio à Polícia Federal ultrapassa 1,6 mil.
Professores, diretores, coordenadores e alunos de 53 escolas municipais de Boa Vista tiveram que mudar a rotina com o início do ano letivo de 2017 para receber 408 alunos venezuelanos matriculados na rede pública .
Na escola municipal Jânio da Silva Quadros, no bairro Tancredo Neves, zona Oeste da capital, a recepção e o cardápio foram traduzidos para o espanhol. A diretora, Maria de Jesus, diz que é uma forma de mostrar aos 20 alunos estrangeiros que eles são bem vindos.
“Na escola eles vão ser alfabetizados e terão todo o ensino em português. Essas mudanças nas placas, com palavras em espanhol, é uma forma de acolhê-los, de dizer que eles são bem vindos e que nos preocupamos com o bem estar deles”, explicou a diretora.
A maior mudança, entretanto, ocorreu dentro das salas de aula. Professores que não falam espanhol, língua usada na Venezuela, se viram obrigados a buscar métodos de compreender e serem compreendidos pelos alunos.
“A criança tem uma pureza tão grande que para elas é mais um coleguinha” – Hefrayn Costa Lopes, secretário-adjunto de Educação de Boa Vista
Salomé Carvalho é professora há 22 anos e atualmente dá aula a seis venezuelanos em sua turma do 1º ano na escola municipal Professor Carlos Raimundo Rodrigues, também no bairro Tancredo Neves. Na escola estudam 22 crianças venezuelanas.
Ao G1 a professora contou que não fala espanhol e que teve que mudar a dinâmica na sala de aula. Salomé admitiu que ela e os alunos ainda estão se adaptando a nova realidade.
“Não falo espanhol e existe uma dificuldade para eles entenderem o que explico. Quando falo para a turma toda eles não conseguem assimilar o que estou falando. Preciso fazer um trabalho individualmente”, contou.
Relatos similares foram dados por outras professoras. Júlia Medrada ensina na mesma escola para alunos do 3º ano e tem um aluno venezuelano em sua sala, o Carlos Licontes, de 10 anos.
“É engraçado porque não falo espanhol e quando ele não me entende sempre vai na minha mesa. Ele diz que não está compreendendo e eu digo que também não estou, porque ele fala muito rápido”, disse a professora brincando.
Júlia explicou que observa o empenho do aluno ao tentar falar em português, mas considera que é difícil se adaptar a nova língua. “Também vou a mesa dele e tento explicar bem devagar as atividades. As vezes ele escreve em espanhol no livro de português”, disse.
Para as professoras, o maior problema é a língua. “Sei que ele sabe o conteúdo. Dou algumas aulas de português que ele fala: ‘já estudei isso na minha escola’ e explica o que é, só que ele aprendeu voltado para o espanhol e nosso currículo exige que ele use o português”, considerou Júlia.
A mãe de Carlos, Yaliscar Salazar, de 32 anos, conta que chegou no Brasil com os dois filhos e o marido há três meses. Eles saíram da cidade de Puerto Ordaz, na Venezuela, e viajaram 830 km em busca de emprego, saúde e educação para os filhos.
Yalisca afirmou que sabia que a adaptação do filho na escola seria difícil. “Ele não fala português. Foi alfabetizado em espanhol, então é mais difícil para ele. Minha filha de seis anos também estuda aqui, mas para ela é mais fácil porque está aprendendo agora a escrever”.
“Não falo espanhol e existe uma dificuldade para eles entenderem o que explico” – Salomé Carvalho, professora
Estudante da escola municipal Professora Maria Francisca Lemos, no bairro Buritis, zona Oeste de Boa Vista, Maria Vitória Vila Nova, de 11 anos, é de Caracas, capital da Venezuela. Ela está no Brasil há um ano e estuda na 5ª série da escola onde 24 alunos são estrangeiros.
A menina, que hoje fala bem português, disse que chegou ao Brasil sem falar a língua. “Aprendi aqui na escola. Era meio chato conversar com os colegas na sala porque era muito difícil de entender, mas depois fui me acostumando”.
Segundo Maria, a escola em Boa Vista é muito diferente da que estudava em Caracas. “A escola não tinha ar condicionado, não dava comida [merenda] e a gente tinha que comprar a roupa [uniforme]. Na parte do ensino, lá era diferente, mas os dois são bons”, disse.
Sandra Maria Borges Mota é professora de dois alunos venezuelanos. Para ela, uma das maiores dificuldades é o acompanhamento dos pais.
“Para eles [alunos venezuelanos] é mais difícil. Eles falam português na escola, mas em casa os pais falam em espanhol e encontram dificuldade de acompanhar as atividades dos filhos”.
Sobre a relação com brasileiros, as professoras dizem que eles são recebidos com naturalidade.
“Os demais alunos acham curioso e ficam pedindo para ensinarem palavras em espanhol para eles”, disse a professora Júlia.
Alunas do 3º ano, as gêmeas Sara e Sofia Vasconcelos da Silva, de 8 anos, contaram que é divertido o convívio com um menino venezuelano da mesma sala que elas. “As vezes é difícil entender o que ele fala, mas a gente tenta conversar com ele. Ele é legal”.
Pais brasileiros dizem que mistura enriquece ensino
A comerciante Andréia Melo, de 32 anos, tem um filho de 6 anos que está no 1º ano. O menino estuda na sala da professora Salomé, com outras seis crianças venezuelanas.
Para ela os alunos estrangeiros somam a educação do filho. “Acho bacana porque são novas experiências para ele. Como ele é pequeno, ele diz que eles [alunos venezuelanos] falam diferente e acha engraçado”. Segundo Andréia, ela não teve dificuldades para conseguir a vaga do filho na escola.
Júnior Carvalho, de 39 anos, têm dois filhos na escola municipal Carlos Raimundo Rodrigues. Ele contou que dois alunos venezuelanos estudam com a filha. “Acredito que a presença deles não prejudica o ensino dela. Ela comenta que eles estão na sala e que falam diferente”.
O funcionário público Kelsen Rivera, de 26 anos, também afirmou que não vê problema na integração. “Não acredito que possa prejudicar e sim que deve somar. Eles têm contato e interação com uma outra língua”.
‘Estamos nos adaptando’, diz secretário-adjunto
O secretário-adjunto de Educação de Boa Vista, Hefrayn Costa Lopes, explicou que as escolas ainda estão se adaptando aos novos alunos. Segundo ele, em 2015 e 2016, o número de alunos estrangeiros era pouco maior que 100, mas atualmente são 460, sendo 408 venezuelanos.
Embora tenha ocorrido aumento significativo de venezuelanos matriculados, ele garante que não há problemas com número de vagas ofertadas nas escolas e que não há lista de espera.
Segundo Lopes, os alunos estrangeiros participam do mesmo programa de ensino que os brasileiros e recebem os mesmos materiais como farda, cadernos, livros e lápis. O secretário-adjunto reforçou ainda que a integração não causa qualquer problema.
“Para as crianças não teve mudança. A criança tem uma pureza tão grande que para elas é mais um coleguinha. A única curiosidade vai ser que ela vai ver o coleguinha falar e vai ser uma novidade, vai ser interessante. Mas assim, não temos percebido nenhum prejuízo em nenhum dos lados”, pontuou.
“Ano passado tínhamos 2 estudantes. Este ano são 22” – Marina Madureira, diretora de escola
Cátia Habert, diretora da escola Professora Maria Francisca Lemos, disse que a maior dificuldade dos pais para matricular os alunos é a documentação. Muitas vezes os alunos não possuem o histórico escolar ou a documentação não está traduzida.
Segundo Cátia, os professores são orientados a se comunicar com as crianças em língua portuguesa. “É complicado, mas os professores estão se dedicando”. Para ela não existe prejuízo nem para as crianças brasileiras nem para as venezuelanas.
“Nós buscamos alternativas como o projeto de leitura no horário oposto para ajudar os alunos que estejam com dificuldade”, disse.
Diretora da escola Professor Carlos Raimundo Rodrigues, Marina Madureira, disse que toda a escola se mobilizou para atender os alunos. “Ano passado tínhamos 2 estudantes. Este ano são 22”.
De acordo com Marina, professores, coordenadores e a direção fazem um acompanhamento individual com os alunos venezuelanos, especialmente aqueles com mais dificuldade com a língua portuguesa.
“Fizemos um mapeamento e estamos acompanhando o ritmo da aprendizagem, a frequência, fazendo reunião com os pais. É um trabalho voltado para esse público. Antes acompanhávamos as turmas, no caso deles é personalizado”, disse.
A prefeitura de Boa Vista também têm dois técnicos com licenciatura em espanhol que dão assessoria nas escolas com alunos venezuelanos. O trabalho, que é de monitoramento, ocorre semanalmente, segundo o secretário-adjunto.
No mês de maio, a coordenação municipal de ensino infantil e fundamental deve elaborar um plano para que ocorra capacitações em espanhol aos professores da rede pública a partir do segundo semestre. A ideia é formar parcerias com outras instituições.
Fonte: G1